Agentes e militares já não vêem as forças de segurança como um emprego para a vida
Quase todos os agentes da PSP dizem que o ordenado é baixo e que tem de ser complementado com serviços gratificados, mas que isso implica trabalhar horas a fio para receber mais 20...
Chegou a escoltar o Presidente da República, mas a situação em que se encontrava levou-o a decidir largar a carreira e emigrar. O primeiro emprego que conseguiu foi como padeiro. Os clientes a quem distribuía o pão todas as manhãs, num dos bairros mais chiques da cidade, nunca sonharam que Filipe era um polícia. Lucas também pediu uma licença sem vencimento à PSP e mudou-se para Angola. Em Portugal chegava a trabalhar 16 horas por dia para levar para casa, ao fim do mês, pouco mais de 800 euros. Hoje ganha 11 vezes mais e só trabalha oito horas. Elsa era oficial e dava aulas na Escola Prática de Polícia em Torres Novas. Teve nas mãos a formação de milhares de agentes, mas agora vive em Luanda e não pensa regressar a Portugal tão cedo. David precisou de mentir à GNR e dizer que tentou suicidar-se para conseguir uma licença sem vencimento. E em breve estará a trabalhar na cozinha de um restaurante alemão.
Há cada vez mais polícias a abandonar o país, culpa da crise económica e dos cortes nos vencimentos, nos subsídios e nas regalias sociais. Muitos queixam-se do “mau ambiente” e da “falta de condições” nas forças de segurança.
Segundo os dados oficiais da PSP, o número de agentes que pedem para sair da polícia não tem parado de aumentar nos últimos três anos. Em 2010 houve dez que pediram a desvinculação. No ano passado o número aumentou para 27 e já este ano, até ao final de Setembro, 32 polícias deram entrada com o pedido.
Na GNR o cenário não é diferente. Só este ano, até ao dia 24 de Setembro, houve 24 militares que pediram licenças ilimitadas – que, na Guarda, são concedidas por um período máximo de três anos seguidos ou seis alternados –, enquanto no ano passado só 17 tinham optado pelo afastamento temporário da instituição. Em 2010 registaram-se apenas sete pedidos.
A DESILUSÃO DE LUCAS Dois meses depois de ter pedido a licença de longa duração à PSP, Lucas já estava instalado em Angola e com a esperança de nunca mais voltar a trabalhar em Portugal. Num espaço de apenas dois anos, conseguiu juntar dinheiro suficiente para pagar a pronto a casa que deixou na terra.
Quando emigrou tinha seis anos de polícia, uma filha com pouco mais de um ano e a mulher desempregada. No início da carreira ouvia os agentes mais velhos dizer-lhe que não se preocupasse tanto com o combate ao crime. Mas só anos mais tarde viria a compreender do que falavam. Lucas chegava a trabalhar 16 horas por dia para conseguir pôr dinheiro em casa. Além do trabalho na esquadra, acumulava todos os serviços gratificados que podia e aos fins-de-semana e vésperas de feriado ainda fazia segurança ilegal em bares e discotecas de Lisboa. “Era uma maneira de arranjar dinheiro fácil e na hora: ao fim de cada noite conseguia 50 euros limpos”, recorda. Agora, em Angola, ganha 11 vezes mais (um salário líquido de quase 9 mil euros) e só precisa de trabalhar oito horas por dia. Entretanto, levou a mulher e a filha para Luanda. Em Portugal, o antigo agente da PSP, que já está a tratar das papeladas para abandonar definitivamente a polícia, recorda que o maior problema nem era a remuneração baixa, mas a quantidade de horas de serviço. “Às vezes tinha o trabalho normal na esquadra e dois gratificados no mesmo dia… quando chegava ao segundo já não estava capaz”, confessa. Como se não bastasse, as horas extraordinárias eram pagas com “meses e meses de atraso”, especialmente os gratificados do futebol. “Além disso, metade do dinheiro que recebia pelos extras ia para o Estado”, conta. A recordação que Lucas, hoje com 37 anos, tem da PSP resume-se a uma frase: “Trabalhar uma média de 12 horas por dia e perder metade do salário em descontos.”
Além disso, a distribuição dos gratificados na esquadra nem sempre era justa, porque “os comandantes escolhiam os melhores serviços para os amigos”, recorda. Por causa disso, chegou a ver- -se em maus lençóis: “Não me calava quando percebia essas injustiças, mas na polícia quem reclama é quase sempre prejudicado”, garante.
Para trás ficou uma carreira brilhante. Lucas fez parte da brigada que mais detenções fez a nível nacional durante dois anos seguidos, participou numa das maiores apreensões de dinheiro vivo da história da polícia e perdeu a conta aos gangues que conseguiu desmantelar. Com o passar dos anos desencantou-se. Muitos dos criminosos que detinha acabavam em liberdade por ordem do tribunal e chegaram a incendiar-lhe o carro, por vingança, à porta de casa. “Os mais velhos diziam-me que não trabalhasse tanto porque, por muito que me esforçasse, nunca conseguiria acabar com o crime e os criminosos acabavam sempre em liberdade e depois tramavam-nos. Quem faz muitas detenções anda sempre metido em problemas”, diz. No último ano na PSP, Lucas admite que já só prendia “em último caso”. E as condições na esquadra deixavam muito a desejar. “ Cheguei a andar a empurrar o carro da polícia na rua e a usar a minha viatura pessoal para fazer serviços”, recorda. Por tudo isto, diz que não volta à PSP. “Nem que me oferecessem 10 mil euros por mês, que é mais do que ganho aqui”, garante.
AS SAUDADES DE FILIPE Nem todas as histórias de emigração têm finais felizes. Filipe, 37 anos, é camionista dos correios e está há menos de um ano numa capital europeia. Desde que emigrou emagreceu dez quilos. À semelhança da maioria dos polícias que saem do país, o ex- -militar não quis abandonar definitivamente a GNR e pediu uma licença sem vencimento. Para trás ficaram a mulher e as duas filhas. Filipe, que chegou a escoltar o Presidente da República e começou a trabalhar no estrangeiro como padeiro, foi-se embora no dia em que a filha mais velha fazia anos. Levava apenas duas malas e quando o avião da British Airways descolou do aeroporto de Lisboa desfez-se em lágrimas. “E já chorei mais desde que estou aqui do que em toda a minha vida”, confessa.
O rendimento na GNR já não dava para as despesas. Em 2007 comprou uma casa e endividou-se com a hipoteca de 200 mil euros. Todos os meses, entre o crédito, os carros, a escola das filhas e a alimentação, gastava 1600 euros. Mas só ganhava 1200 líquidos na polícia e já com todos os subsídios incluídos. Muitas vezes trabalhava 15 horas seguidas e a correr o país de lés a lés. Em 2008, com a extinção da Brigada de Trânsito (BT), Filipe transitou para a Unidade Nacional de Trânsito (UNT). “Que foi criada, à partida, para ser terminada”, pensa o militar. Com a mudança mudaram também os pagamentos dos gratificados, que antes eram os serviços mais bem pagos da BT. “Trabalhava-se muito, mas recebia-se bem”, recorda. Com a UNT, as horas de trabalho extra começaram a deixar de fazer sentido. “Fazia uma ginástica incrível para receber mais 20 ou 30 euros ao fim do mês, não era vida para ninguém. Trabalha-se de mais na GNR, por isso é que por vezes há acidentes. As cargas horárias são absurdas”, garante. Em apenas dois anos, a vida da família de Filipe mudou radicalmente. “De um momento para o outro deixei de ter subsídios, abono de família, passei a pagar mais IRS, a creche aumentou, começaram a cortar-nos na ADMG [assistência na doença] e as minhas filhas têm problemas de saúde”, recorda o antigo militar.
Mas o mais difícil ainda estava para chegar e no estrangeiro. Uma semana depois de aterrar na capital europeia onde vive, Filipe percebeu que estava metido em sarilhos. Os amigos falharam e afinal o emprego combinado não era certo. Nos primeiros meses arrendou um quarto pequeno, onde mal cabiam as duas malas, na casa do tio de um amigo – que também tinha sido militar da BT em Portugal. “Percebi que eles levavam a verdadeira vida de emigrante, que não corresponde àquilo que ostentam nas férias em Portugal: aqui trabalha-se de sol a sol e em condições desumanas. Percebi que aquilo que me tinha sido contado não correspondia à verdade”, confessa.
Quando se mudou para o estrangeiro, Lucas esperava conseguir emprego como camionista, mas as empresas não lhe reconheciam a carta de pesados portuguesa. Depois de tratar da burocracia e terminar uma formação de três meses, continuou a ser recusado em todos os trabalhos porque lhe exigiam pelo menos dois anos de experiência nas estradas do país. Quando finalmente começou a trabalhar, a distribuir leite e pão, fazia o caminho para casa a pé, porque os transportes eram demasiado caros e precisava de juntar dinheiro para a família. “Chegava a correr a cidade de uma ponta a outra e a fazer dezenas de quilómetros a pé.” Recentemente encontrou outro emprego, como condutor dos correios. Ganha 600 euros por semana e consegue mandar 800 para Portugal todos os meses. “Estou a ver se arranjo melhor. Embora me pergunte quase todos os dias se vale a pena continuar aqui”, confessa. Todos os dias fala com a mulher e as filhas pelo Skype.
A FUGA DE DAVID Também ainda não sabe se vai valer a pena. David, 32 anos, militar da GNR, vai emigrar em Janeiro para a Alemanha e está a tratar dos papéis da licença. Para poder sair da Guarda teve de alegar problemas psiquiátricos e invocou mesmo uma tentativa de suicídio. “Estou muito desiludido com a instituição”, começa por explicar. O excesso de horas de trabalho é o principal motivo de desgaste. O mês tem 30 dias e David trabalha 27 e, apesar do esforço, ganha menos de mil euros. Depois há os cortes. “Comparando o ano passado com este ano, já perdi 2 mil euros”, diz.
Além disso, o ambiente na GNR não é dos melhores. “Somos pressionados para apresentar serviço. Se tudo correr bem, os louros não ficam para nós e se correr mal ninguém nos apoia.”
David garante que sabe do que fala: já se viu envolvido dois processos-crime. Um por ter partido acidentalmente um braço a um criminoso durante uma detenção difícil. Para evitar ser julgado entrou em acordo e pagou 1800 euros de indemnização do próprio bolso. Não recebeu um cêntimo de ajuda da GNR. Ainda pediu um advogado à Guarda, mas teve de lhe pagar os honorários. No segundo processo, quando um outro criminoso o acusou de tentativa de homicídio, também não teve apoio da instituição. Nos primeiros dias de Janeiro, David já estará na Alemanha, onde o espera a cozinha de um restaurante italiano. Vai ganhar 1200 euros limpos. “Não é muito, mas para início no estrangeiro já é razoável e o nível de vida lá é muito semelhante”, diz. David tem um filho de seis anos, está a tratar de arranjar casa na Alemanha e, se tudo correr bem, espera não voltar a Portugal.
ELSA E O PAÍS DAS OPORTUNIDADES Ainda se lembra dos tempos em que entrar para a polícia era sinónimo de um emprego para a vida. Elsa está há um ano em Angola e até nem estava mal na PSP: era oficial superior e a razão da mudança foi o marido, também oficial da PSP, que arranjou emprego em Luanda. “Ele é formado em Direito e em Portugal não podia exercer, porque o trabalho na polícia é incompatível com qualquer outra profissão”, conta. O marido emigrou em 2008, depois de ter estado em Angola várias vezes em missão. Gostou do país – “o país das oportunidades”, segundo Elsa – e arranjou emprego como assessor do reitor de uma nova universidade.
Há um ano, Elsa, 48 anos, juntou-se a ele e hoje é vice-reitora de uma outra instituição. Em Portugal, ele ganhava 1300 euros e ela 2200 – que ficaram reduzidos a pouco mais de 1700 por causa dos cortes salariais. “Foi uma diferença grande no orçamento e eu estava colocada a 200 quilómetros de casa”, conta. Com a introdução de portagens na auto-estrada que costumava usar para ir trabalhar, Elsa acumulou mais uma despesa.
Agora, em Angola, cada um ganha perto de 8 mil euros por mês. Nos anos em que deu aulas na Escola Prática de Polícia, passaram pela sua sala de aula milhares de novos agentes. Hoje ainda há muitos que a contactam porque querem saber como podem emigrar para Angola. De qualquer forma, Elsa quer voltar a Portugal dentro de cinco, seis anos. “Não me passa pela cabeça, por exemplo, passar cá o Natal”, garante. As saudades de Portugal e da polícia aumentam. “Adoro a farda e a instituição”, diz a oficial. Mesmo assim, o regresso não deverá acontecer em breve. “Voltaríamos se o país estivesse melhor. Eu saí porque as coisas estavam a ficar piores e aflige-me o futuro dos meus filhos”, confessa. E na polícia as coisas não estão melhores. “Antes era um emprego para a vida. Mas neste momento há toda uma conjuntura que gera desmotivação nos polícias. Não há promoções, os cortes são imensos. O cidadão comum não faz ideia.”
Elsa, que durante anos ajudou a formar milhares de agentes da PSP, lamenta que se estejam a perder bons profissionais. “Os que têm mais valor são os que mais facilmente saem. Não se está a aproveitar o dinheiro que o Estado gastou na formação deles, nem as suas capacidades”, diz.
POLÍCIAS PEDEM AJUDA A ASSOCIAÇÕES ANTES DE EMIGRAR Nos últimos meses têm chegado às associações socioprofissionais da GNR e da PSP dezenas de contactos de polícias que querem emigrar. A maioria quer saber como tratar do processo antes de sair de Portugal. “Nunca aconselhamos a ruptura definitiva com a instituição, porque pode correr mal no estrangeiro”, diz Armando Ferreira, presidente do Sindicato Nacional da Polícia (SINAPOL). Também há quem pergunte por empregos na área da segurança no estrangeiro: “Querem saber como podem entrar em contacto com empresas de segurança privada e perguntam se conhecemos alguém que os possa orientar no país para onde estão a pensar emigrar”, conta o presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP) da PSP.
Paulo Rodrigues garante que há cada vez mais polícias a sair do país e atribui a culpa à crise económica. “Nos últimos anos, o impacto tem-se sentido no vencimento, mas sobretudo na perda de benefícios na área da saúde ou no aumento da idade da pré-aposentação”, exemplifica. “Há um sentimento de instabilidade dentro da polícia e um enorme cepticismo em relação ao futuro e à progressão na carreira”, acrescenta o sindicalista. Além disso, e perante os cortes salariais, a carreira nas forças de segurança tem, à partida, uma desvantagem. “Há um regime de incompatibilidade total, não é possível ter outro trabalho para equilibrar o orçamento familiar”, sublinha Paulo Rodrigues. Armando Ferreira acrescenta que “já não há nada de apelativo na carreira de polícia”.
José Alho, da Associação Socioprofissional Independente (ASPIG) da GNR, atribui o afastamento de muitos militares a este regime de exclusividade, bem como ao “excesso de horas de trabalho” e aos baixos salários praticados na Guarda. Os pedidos de ajuda de militares aos serviços sociais da GNR não têm parado de aumentar. “A GNR tem feito um bom trabalho nessa área e tem orientado financeiramente e psicologicamente muitos militares em dificuldades”, garante José Alho.
César Nogueira, da Associação dos Profissionais da Guarda (APG), alerta para o facto de muitos guardas estarem a pedir a desvinculação definitiva da instituição, “porque as licenças sem vencimento estão a começar a ser dificultadas”, justifica.
Virgílio Ministro, da Associação Nacional de Guardas (ANG), está convencido que para o ano será mais difícil conseguir licenças sem vencimento: “Com as condições que se estão a criar, duvido que em 2013 algum polícia consiga uma licença. Só em situações excepcionais”, diz. “A GNR já teve 31 mil homens e neste momento tem cerca de 22 mil. Há postos com cinco militares e com tantos profissionais a sair do país e as restrições nas admissões quem paga é o cidadão”, avisa.
Na PSP, Peixoto Rodrigues, do Sindicato Unificado da Polícia (SUP), acrescenta que a emigração aliada à falta de efectivos que já existia na PSP pode pôr em causa “a operacionalidade da polícia e, consequentemente, a segurança da população”.
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