Tem corpo e discurso de crescido, mas é apenas um miúdo. Aos 14 anos, Ricardo não esquece o episódio que ditou o final da sua infância. O divórcio dos pais saíra havia apenas uma semana. Era a véspera dos seus anos. Dos seus 11 anos. "Lembro-me de o meu pai querer entrar lá em casa à força, de a minha mãe tentar impedi-lo e de ele lhe ter batido. Eu agarrei no meu irmão e fugimos para o meu quarto, cheios de medo. E depois a polícia foi lá a casa.
"Era a primeira vez que Nuno, hoje com 39 anos, passava ao ato e agredia a sua ex--mulher, Ana, mais nova um ano, provocando-lhe um traumatismo craniano e uma série de rasgões nos músculos junto da costela superior (o que obrigou a uma cirurgia, com a aplicação de uma prótese, e dores num braço para o resto da vida). A queixa à polícia seguiu os seus trâmites, enquanto o processo de Ricardo e do irmão mais novo foi entregue ao tribunal de família. Condenado por violência doméstica com pena suspensa, Nuno não perdeu tempo a apontar o dedo a Ana, acusando-a de não o deixar ver os filhos. "O nosso pai dava-nos tudo o que lhe pedíamos, mas não nos ligava quase nada", explica Ricardo, sobre o facto de ter deixado de querer estar com Nuno. Uma pausa depois, lá vem a confissão: gostava que Nuno fosse "um pai como deve ser". Silêncio. "Mas como não posso mudar as pessoas, estou melhor assim..."
Dar um murro na mesa
Foi a pensar em miúdos obrigados a viver num ambiente hostil, testemunhando agressões entre os pais, que a Comissão de Igualdade de Género (CIG) lançou a mais recente campanha contra a violência doméstica. "Em 2011, 42% dos casos foram presenciados por menores", revela Marta Silva, coordenadora do núcleo de violência doméstica da CIG. "São quase metade." Sob o slogan "Em vossa defesa, dê um murro na mesa", a campanha mostra uma mãe a questionar o médico sobre as reações estranhas do filho. O clínico devolve-lhe a pergunta: "Há quanto tempo é que o seu marido lhe bate?"É o retrato da vítima-tipo: mulher, casada e com filhos. "Impõe-se acabar com a crença de que 'ele é mau marido mas é bom pai', porque os efeitos sobre as crianças são muito nefastos", defende Marta Silva, recusando críticas à campanha. "A nossa intenção é pôr as pessoas a falar do assunto." Curiosamente, a mesma motivação que levou o produtor Tino Navarro a escrever o argumento de Quarta divisão, filme realizado por Joaquim Leitão, que estreou a 28 de fevereiro: "Gostava que convidasse à reflexão: não há nada mais miserável do que alguém ser maltratado por quem mais ama.
"Seja no consultório médico, seja na polícia ou na escola, tem havido avanços nos últimos anos. Como em muitos casos, o primeiro passo é fazer queixa às autoridades, as esquadras de polícia tornaram-se chão muitas vezes pisado para estas vítimas e para os seus filhos. E os agentes ganharam uma sensibilidade especial à situação. "Mesmo que a mãe seja a principal vítima, não podemos esquecer que a criança também sofre maus-tratos psíquicos", sublinha o primeiro-sargento Carlos Daniel, chefe do núcleo de Lisboa do projeto de Investigação de Apoio a Vítimas Específicas. Um miúdo entrevistado no gabinete que o agente ocupa no posto da GNR da Malveira (Mafra) encontra ali bonecos de peluche, um "saco mágico" com brinquedos e até um computador portátil. "Se vir que vai ajudar, empresto--lho um bocadinho", sorri o militar.Carlos Daniel sabe também que, quando a violência é extrema, a criança aparece muito mais assustada do que a mãe, "o que é natural, até por não estar habituada ao mundo dos adultos".
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