Este é um crime com muito sangue pelo meio. Por essa razão, resolvemos ocultar determinados detalhes, para não impressionar os mais sensíveis. Uma história que começou com distúrbios num apartamento, continuou com uma seringa e podia ter acabado com um tiro
Aviso prévio: esta história tem conteúdo capaz de ferir a sensibilidade dos leitores mais susceptíveis.
Os agentes Nuno e Carlos seguiam no carro-patrulha quando receberam, pelas 22h10, uma chamada a alertar para desordens num apartamento do lote 6 de uma rua do Bairro da Cruz Vermelha. Chegados ao local, subiram, entraram na casa e bateram à porta do quarto. Depois, foi como nos filmes, tudo demasiado rápido.
José Carlos, o agora arguido, gritou "Bófias do caralho, vocês já vão ver como elas vos mordem", e saiu de rompante, empunhando na mão direita uma seringa ensanguentada que apontou à face do agente Nuno. Este só teve tempo de sacar do bastão. À primeira bastonada, partiu a agulha da seringa, mas José Carlos continuou a apontar aquele objecto, ou o que restava dele, à cara do agente, até nova bastonada o deixar cair. Como José Carlos ainda reagia, o agente teve de atirá-lo ao chão com o seu próprio corpo. Nessa altura, Nuno - como o próprio confessará em tribunal - agradeceu a Deus por estar de luvas: tal como a seringa, o corpo de José Carlos também tinha sangue.
Mas nem assim José Carlos se acalmou. Continuou a espernear e a insultar os agentes, nunca utilizando regra e esquadro para medir as palavras:
"Filhos da puta, vou-vos foder a vida. Quem manda nesta casa sou eu."
Em tribunal, a advogada de defesa tentará pedir um adiamento, invocando que o seu cliente é toxicodependente em último grau, está cheio de dores e com "uma ressaca muito grande". Mas a verdade é que para quem está cheio de dores e com "uma ressaca muito grande", José Carlos aguentar-se-á muito tempo de pé, porque a juíza não será rápida na leitura da sentença.
Por agora, que se explique o réu:
"Não me lembro de ter apontado a seringa a ninguém, estava no meu quarto a fazer a minha dosezinha."
"Então não se lembra de nada?"
"Posso ter dito uma asneira ou outra mas não acredito que tenha tentado espetar a seringa em alguém."
"Está a torcer o corpo. Está tudo bem?"
"Estou todo aleijado, aqui... e aqui", lamenta-se José Carlos, enquanto mostra a mão direita e levanta a sweat para mostrar o abdómen.
"E por que é que lhe fizeram isso?"
"Para me levarem para a carrinha. Porque tinha tirado o telefone à minha mãe para ligar à minha irmã."
"Então lembra-se de ter tirado o telefone e não se lembra disso? Está a ver como a sua memória é estranha?"
É chegada a vez do agente agredido, que ainda tem os nervos frescos. Ele contará os factos aqui reportados e mais dirá que em tantos anos de serviço naquele bairro problemático nunca antes temeu tanto pela sua integridade física. E que a sua sorte foi ter-se chegado para trás porque este caso podia ter um desfecho pior: "Podia ter usado a arma de fogo e ter-lhe dado um tiro."
Coisa que aliás também passou pela cabeça do agente Carlos, quando viu a vida de Nuno em perigo.
Para os agentes foi a situação mais tenebrosa da carreira; para a advogada tudo se resumiu a um "acto de supetão", uma "surpresa". Há pessoas assim: peritas em usar eufemismos.
"Qual era o vosso medo?", pergunta a defensora ao agente Carlos.
"Exactamente igual ao seu se estivesse na mesma situação. Antes de sermos agentes também somos homens."
A estratégia da advogada é esta: mostrar que o arguido tinha consumido e estava fora de si, tendo reagido de surpresa, e que parte da culpa deste desfecho é dos agentes, que não estavam preparados para reagir naquela situação. "A versão dos agentes é exagerada. O sangue perde logo qualidades de transmissão de doença infecto-contagiosa e eles deveriam saber isso. Dois agentes com aquele corpo terão de ter outra preparação."
Os agentes não querem acreditar no que estão a ouvir. Provavelmente juíza e procuradora também não, mas como todo o homem tem direito a defesa, não têm outra alternativa senão ouvir.
José Carlos foi servente de pedreiro, mas entretanto evoluiu na carreira: não trabalha desde o ano de 1999. Depende economicamente da mãe reformada. Graças ao seu cadastro passaremos dez minutos na sala de audiências a ouvir falar de crimes de dano, furto qualificado e tráfico de estupefacientes, cometidos entre 1994 e 2006. Mas com tanto cúmulo jurídico e perdões de anos de pena perdemo-nos e não conseguimos contar quanto tempo passou na prisão. Não sabemos se mais ou menos do que os crimes que cometeu.
Desta vez vê-se livre da cadeia: é condenado a uma pena de 180 dias de multa, à taxa diária de cinco euros, pelos dois crimes de injúria agravada e a 18 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo de resistência e coacção. Ficará ainda sujeito a regime de prova. Só se não cumprir voltará para a cadeia.
José Carlos ouve a sentença e abre a boca de sono, enfastiado. O condenado tem outro problema mais imediato para resolver: não tem dinheiro para chegar a casa e também não se lembra do telefone da mãe. Talvez precise de muita sorte: tendo em conta o episódio da noite anterior é pouco provável que algum dos presentes lhe ofereça boleia.
Os agentes Nuno e Carlos seguiam no carro-patrulha quando receberam, pelas 22h10, uma chamada a alertar para desordens num apartamento do lote 6 de uma rua do Bairro da Cruz Vermelha. Chegados ao local, subiram, entraram na casa e bateram à porta do quarto. Depois, foi como nos filmes, tudo demasiado rápido.
José Carlos, o agora arguido, gritou "Bófias do caralho, vocês já vão ver como elas vos mordem", e saiu de rompante, empunhando na mão direita uma seringa ensanguentada que apontou à face do agente Nuno. Este só teve tempo de sacar do bastão. À primeira bastonada, partiu a agulha da seringa, mas José Carlos continuou a apontar aquele objecto, ou o que restava dele, à cara do agente, até nova bastonada o deixar cair. Como José Carlos ainda reagia, o agente teve de atirá-lo ao chão com o seu próprio corpo. Nessa altura, Nuno - como o próprio confessará em tribunal - agradeceu a Deus por estar de luvas: tal como a seringa, o corpo de José Carlos também tinha sangue.
Mas nem assim José Carlos se acalmou. Continuou a espernear e a insultar os agentes, nunca utilizando regra e esquadro para medir as palavras:
"Filhos da puta, vou-vos foder a vida. Quem manda nesta casa sou eu."
Em tribunal, a advogada de defesa tentará pedir um adiamento, invocando que o seu cliente é toxicodependente em último grau, está cheio de dores e com "uma ressaca muito grande". Mas a verdade é que para quem está cheio de dores e com "uma ressaca muito grande", José Carlos aguentar-se-á muito tempo de pé, porque a juíza não será rápida na leitura da sentença.
Por agora, que se explique o réu:
"Não me lembro de ter apontado a seringa a ninguém, estava no meu quarto a fazer a minha dosezinha."
"Então não se lembra de nada?"
"Posso ter dito uma asneira ou outra mas não acredito que tenha tentado espetar a seringa em alguém."
"Está a torcer o corpo. Está tudo bem?"
"Estou todo aleijado, aqui... e aqui", lamenta-se José Carlos, enquanto mostra a mão direita e levanta a sweat para mostrar o abdómen.
"E por que é que lhe fizeram isso?"
"Para me levarem para a carrinha. Porque tinha tirado o telefone à minha mãe para ligar à minha irmã."
"Então lembra-se de ter tirado o telefone e não se lembra disso? Está a ver como a sua memória é estranha?"
É chegada a vez do agente agredido, que ainda tem os nervos frescos. Ele contará os factos aqui reportados e mais dirá que em tantos anos de serviço naquele bairro problemático nunca antes temeu tanto pela sua integridade física. E que a sua sorte foi ter-se chegado para trás porque este caso podia ter um desfecho pior: "Podia ter usado a arma de fogo e ter-lhe dado um tiro."
Coisa que aliás também passou pela cabeça do agente Carlos, quando viu a vida de Nuno em perigo.
Para os agentes foi a situação mais tenebrosa da carreira; para a advogada tudo se resumiu a um "acto de supetão", uma "surpresa". Há pessoas assim: peritas em usar eufemismos.
"Qual era o vosso medo?", pergunta a defensora ao agente Carlos.
"Exactamente igual ao seu se estivesse na mesma situação. Antes de sermos agentes também somos homens."
A estratégia da advogada é esta: mostrar que o arguido tinha consumido e estava fora de si, tendo reagido de surpresa, e que parte da culpa deste desfecho é dos agentes, que não estavam preparados para reagir naquela situação. "A versão dos agentes é exagerada. O sangue perde logo qualidades de transmissão de doença infecto-contagiosa e eles deveriam saber isso. Dois agentes com aquele corpo terão de ter outra preparação."
Os agentes não querem acreditar no que estão a ouvir. Provavelmente juíza e procuradora também não, mas como todo o homem tem direito a defesa, não têm outra alternativa senão ouvir.
José Carlos foi servente de pedreiro, mas entretanto evoluiu na carreira: não trabalha desde o ano de 1999. Depende economicamente da mãe reformada. Graças ao seu cadastro passaremos dez minutos na sala de audiências a ouvir falar de crimes de dano, furto qualificado e tráfico de estupefacientes, cometidos entre 1994 e 2006. Mas com tanto cúmulo jurídico e perdões de anos de pena perdemo-nos e não conseguimos contar quanto tempo passou na prisão. Não sabemos se mais ou menos do que os crimes que cometeu.
Desta vez vê-se livre da cadeia: é condenado a uma pena de 180 dias de multa, à taxa diária de cinco euros, pelos dois crimes de injúria agravada e a 18 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo de resistência e coacção. Ficará ainda sujeito a regime de prova. Só se não cumprir voltará para a cadeia.
José Carlos ouve a sentença e abre a boca de sono, enfastiado. O condenado tem outro problema mais imediato para resolver: não tem dinheiro para chegar a casa e também não se lembra do telefone da mãe. Talvez precise de muita sorte: tendo em conta o episódio da noite anterior é pouco provável que algum dos presentes lhe ofereça boleia.
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