terça-feira, dezembro 25, 2012

Viagem ao Natal de 1983. Onde é que nós já tínhamos visto este filme?

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O i conta como foi o Natal do ano em que o FMI chegou a Portugal. Até parece um déjà vu
Viagem ao Natal  de 1983

Primeiro-ministro vaiado, subsídio de Natal cortado, promessas de reformas na função pública, greves, desemprego, salários em atraso ou manifestações quase diárias. Comparar a quadra natalícia de há três décadas com a deste ano serve para perceber como a história é um eterno looping. Estarão os portugueses condenados a reviver ciclicamente os mesmos dramas? Aqui fica a descrição do Natal de 1983 – com base no que os jornais noticiaram – para tirar as suas próprias conclusões. Nenhuma semelhança com a realidade de hoje é pura coincidência. E muito menos ficção.
Comecemos com o primeiro dia de Dezembro de 1983 quando o então primeiro- -ministro, Mário Soares, garantiu aos portugueses que “a pior fase da crise económica já passou”. Nem assim se livrou de ser recebido com insultos em Coimbra por um grupo de manifestantes. A confusão acabou com quatro detidos pela polícia por “injúrias” ao chefe do governo. O grupo foi ouvido em tribunal, mas acabou absolvido. O juiz, Herculano Namora, considerou tratar-se de um crime semipúblico que exigiria, por isso, queixa por parte do ofendido. Mário Soares não gostou da decisão. “Se o juiz entendeu que não foi crime público, o problema é dele. Ficamos a saber que esse juiz não se importa que lhe chamem gatuno”, criticou perante câmaras e jornalistas. Herculano Namora não foi de modas e participou do primeiro-ministro ao Conselho Superior da Magistratura, alegando “danos de ordem moral”.
O Natal de 1983 – ano em que o FMI chegou a Portugal pela segunda vez – ficou marcado por greves, manifestações e sobressaltos sindicais. Milhares de portugueses com salários em atraso ficaram ainda sem subsídio de Natal e o governo aguardava, com ânsia (ou desespero), a entrada de Portugal na CEE.
Duas semanas antes do Natal, um grupo de 16 bancos internacionais assinou com o governo um contrato que deu ao país acesso a 45 milhões de contos para equilibrar a balança de pagamentos, que já tivera melhores dias: só entre Janeiro e Outubro caíra 11%, apresentando um saldo negativo de 325 milhões de contos. Ernâni Lopes, então ministro das Finanças, formalizou o contrato no Tribunal de Contas, em Lisboa, e garantiu que o empréstimo dos bancos estrangeiros a Portugal seria um sinal de “confiança externa” na política que o governo levou ao longo de seis meses. Ainda assim, o ministro admitiu um caminho sinuoso por percorrer, com “pesados custos” e que exigiria “grandes sacrifícios à nação”. Ernâni Lopes mostrou-se preocupado com o acentuado desequilíbrio das contas externas, mas prometeu: “A política do governo não se esgota na austeridade e no sacrifício.”
Certo é que o desemprego alastrou, atingindo os 11%. Em vésperas de Natal, 7500 trabalhadores da construção civil perderam o emprego só no distrito de Faro. Os funcionários da Lisnave ocuparam as instalações da empresa para reivindicar salários em atraso. A TAP anunciou uma greve do pessoal de terra para 28 de Dezembro e só na noite do dia 23 aconteceram, em todo o país, 25 vigílias promovidas pela CGTP. No total, mais de 100 mil portugueses viviam com salários em atraso. Um dos sindicatos do Norte anunciou: “Pode afirmar-se hoje, com plena legitimidade, que não há garantias de estabilidade de emprego na função pública”.
Além do desemprego, os portugueses bateram-se com o monstro da inflação. Poucos dias antes de 25 saiu uma portaria a estabelecer novos preços mínimos para a venda da carne de porco. O agravamento foi explicado pelo facto de as rações terem aumentado. Em consequência da austeridade, a tuberculose voltou a entrar em força em Portugal, contrariando a tendência decrescente verificada “em todo o mundo”, segundo o presidente do Serviço da Luta Antituberculosa, Leal Gonçalves. Os especialistas admitiram que o aumento de casos poderia estar ligado ao “agravamento das condições de vida e às carências económicas” dos portugueses.
As previsões para o comércio em 1984 foram dramáticas. O índice de quebra de vendas iria variar entre os 30% e os 35% só no primeiro semestre do ano. Nogueira Simões, presidente da Confederação do Comércio Português, queixou-se da “elevada carga fiscal” que estaria a “abafar” as empresas. Morais Leitão, do CDS, concordou e defendeu, numa entrevista ao “Diário de Notícias” (DN), que Portugal teria carga fiscal “excessiva”.
Apesar da contestação generalizada, o Orçamento do Estado para 1984 foi aprovado dez dias antes do Natal, recebendo as críticas de Cavaco Silva. O ex-ministro das Finanças garantiu que as medidas previstas para o ano seguinte conduziriam o país para “uma profunda recessão, com agravamento do desemprego”. Nesse mesmo dia, Lisboa foi assolada por um violento temporal, nevou pela primeira vez na serra da Estrela e, no X Congresso do PCP no Porto, Álvaro Cunhal recusou-se a apoiar uma eventual candidatura de Mário Soares, em 1985, à presidência. Também no mesmo dia, uma reunião de conselhos directivos das escolas do Norte concluiu que os estabelecimentos de ensino público já não estariam em condições de assegurar refeições aos alunos carenciados, devido às restrições orçamentais que levaram a cortes na acção social escolar.
SHOW DO ANO Poucos dias antes do Natal, os habitantes de Vila Real souberam que em 1984 passariam a apanhar o segundo canal em casa, graças à substituição do retransmissor do Marão por um de maior potência. A 21 de Dezembro, o “Natal dos Hospitais” foi transmitido em directo pela RTP e pela RDP a partir do Centro de Medicina de Reabilitação do Alcoitão. Anunciado como “o maior show do ano”, contou com a participação de 50 artistas como Lena D’Água, António Variações, Brigada Vítor Jara ou os grupos corais do Banco do Atlântico e da TAP (por falar na TAP, o administrador da altura disse, no Natal, que seria de esperar que a empresa desse lucro a partir de 1986). Para felicidade dos portugueses, durante a emissão do “Natal dos Hospitais” foram sorteados televisores.
Em Dezembro de 1983, um golpe de sorte juntou um grupo de estivadores e da polícia. Não foi numa manifestação: dez estivadores de Alfama partilharam o primeiro prémio da Lotaria do Natal com 22 empregados da messe da direcção da PSP. Joaquim Inácio, um dos polícias, contou aos jornais que poderia finalmente tirar a família da barraca onde viviam desde 1975, quando regressou de Angola. João Valente, um dos estivadores contemplados, anunciou outros planos: “Vou continuar a trabalhar no porto, comprar um táxi ao rapaz, que parece não ter grande vontade para continuar a estudar, e pagar a casa à minha filha, que está a gastar 20 contos por mês com o empréstimo bancário”, explicou ao DN. Outro premiado no Natal de 1983 foi Joaquim Moço, de Camarate, eleito bombeiro do ano por ter salvo uma família soterrada nos escombros de um prédio. E o campeão nacional de culturismo foi um cozinheiro de Lisboa que sonhava mudar de profissão e trabalhar ao ar livre. “A minha mulher não gosta destas coisas do culturismo, mas eu ainda hei-de ser Mister Portugal”, prometeu Fernando Rocha.
No dia 12 de Dezembro, chegou a Santa Apolónia, com duas horas de atraso, o primeiro comboio especial para emigrantes da CP. Ao contrários dos anos anteriores, constatou a reportagem do DN, as composições não vinham apinhadas. Muitos emigrantes não regressaram à terra em 1983 por culpa da inflação e do desemprego. “É um factor indicativo da crise económica que a Europa ocidental atravessa. Muitos não voltaram porque receiam não ser aceites de volta”, noticiou o jornal. A Secretaria de Estado da Emigração confirmou a diminuição do fluxo de emigrantes e do valor das remessas enviadas para Portugal.
E, já agora, porque nem só de austeridade vive um povo: o Sporting chegou ao Natal de 1983 em terceiro lugar no campeonato, a seguir ao Benfica e ao Porto.

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