Ainda antes do fim da campanha eleitora, no dia 29 de Maio, a direcção da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal teve uma reunião na sede do PSD onde lhes foi apresentado um documento com o novo projecto para a Polícia Judiciária. Indignada, a associação reagiu, em comunicado, contra o secretário-geral do PSD. A ASFIC alertou para a "deprimente falta de cultura jurídica" que revela o programa e contra a possível fusão com a PSP. Entrevistámos Carlos Garcia, presidente da associação, para saber o que quer e o que teme no futuro da Judiciária.
O que pensa da prevista e anunciada unificação das polícias?
Não tenho a certeza de que isto vá acontecer, porque, depois de termos recebido aquele projecto do PSD e termos feito um comunicado em que denunciávamos a existência desse mesmo projecto, recebi variadíssimos telefonemas de destacados militantes e dirigentes do PSD a dizer que este projecto não tinha sido sancionado pelos órgãos do partido, que eram completamente contra isto. Ou seja, mesmo dentro do PSD esta questão não é pacífica, tal como a questão da junção dos ministérios. Não dou por adquirido que isto não seja apenas a tradução da vontade de alguém. O projecto, tal como nos foi apresentado, parece-nos muito difícil de implementar. Toda a PJ vai barricar-se contra este projecto retrógrado e nefasto para a sociedade. Na PJ não somos suicidas, não aceitamos placidamente a extinção.
Que vontade pode ser essa ?
Antes de mais, passa por alguma ideia securitária - uma confusão de conceitos -, confunde-se investigação criminal com segurança pública. A investigação criminal é uma actividade parajudicial, é a realização e promoção de Justiça. Recolha da prova de um crime para levar à detenção do autor desse crime e apresentá-lo à Justiça. Segurança pública é outra coisa.
Voltando à unificação...
O grande risco é permitir a politização e governamentalização das polícias. Há duas semanas tivemos cá colegas espanhóis, eles são agora do corpo nacional de Polícia, mas faziam parte do antigo corpo superior de polícia, (a antiga Polícia Judiciária espanhola). Dizem que o actual corpo de polícia tem muito menos prestígio que o anterior. A qualidade da investigação criminal decaiu e existe, de facto, a politização e governamentalização da polícia. Em Espanha, seria muito difícil, com o modelo de polícia que existe, investigar o primeiro-ministro, como nós aqui com o Freeport.
Isso só por haver uma unificação?
Porque a unificação pressupõe o maior controlo da Polícia por parte do poder executivo, não há separação de poderes. Se tenho a polícia toda controlada, nomeio um director da polícia, que é um político, que controla toda a informação, só há a investigação que eu quiser. Quanto ao modelo francês, apregoado no projecto, a própria polícia francesa desejava ter o nosso modelo de polícia. O MP sai enfraquecido da unificação. Isto pode caminhar para o modelo francês, que se traduz na Polícia Judiciária a investigar autonomamente e depois entregar tudo feito ao Ministério Público. Só chega ao Ministério Público para acusar e só se investiga aquilo que a Polícia quiser, só recebe aquilo que a polícia lhe mandar. Polícia esta que é controlada pelo governo através do director nacional. É um risco.
A tendência é para fazer o inverso?
É. O Conselho da Europa tem dado determinações, nomeadamente a alguns países de Leste, para autonomizar a polícia de investigação criminal. Eles em vez de lhes chamarem polícia chama-lhes agência. Na Eslovénia já aconteceu, na Roménia estão a tentar fazê-lo. É bom lembrar que todas as ditaduras da América do Sul e de Leste tinham uma "polícia nacional". E todas as ditaduras no Mundo, porque há a domesticação das polícias. E o que aqui interessa é a da polícia e da actividade da investigação criminal. Numa polícia única era difícil investigar os faces ocultas, os freeports, os portucales....
Mas o director nacional já é nomeado pelo Ministro da Justiça
Nós sugerimos que o nome deveria ser indicado pelo parlamento e nomeado pelo Presidente da República. O PS contestou logo. Mas este debate tem que ser feito, para que haja uma ainda maior autonomia e independência da Polícia Judiciária. O director da PJ não deve ser nomeado pelo ministro nem deve responder directamente ao ministro. No caso vertente, o director quando sair vai voltar a ser coordenador. Então ele quer voltar a ser mandado por alguns daqueles a quem ele, enquanto director, até possa ter feito mal? Vai sempre fazer alguma subserviência àquele que o nomeou.
Os anteriores eram juízes e procuradores...
Se for nomeado por juízes dá-lhe muito mais independência. Ou seja, aquele que mandou não volta a ser mandado.
O actual director, Almeida Rodrigues, está então numa posição complicada, se o novo governo não o reconduzir?
Esperemos que não o reconduza. Por isso é que pedimos a demissão dele. Porque está a servir mais os interesses da sua carreira que da instituição. Mas é bom que se perceba que nós não somos contra a mudança. Isto não é uma questão corporativa. Isto é uma questão de defesa dos interesses do Estado de direito democrático e o interesse dos cidadãos.
E o projecto agora é...
O projecto da extinção da PJ. Criar uma polícia nacional, com uma estrutura em tudo idêntica à da actual PSP, incorporando ali dois quistos: a PJ e o SEF. Isto assenta na questão económica da racionalização. Mas é tudo falso, porque mantemos a GNR com a actual estrutura, com as actuais competências, e continua a haver sobreposição de funções. Eles continuam a fazer investigação criminal. Todos sabemos que a estrutura da GNR é pesada, militarizada, cara. A Polícia Judiciária é a que menos dinheiro gasta.
Mas isso fazia parte dos plano do PSD.
A legitimidade democrática ganha-se com transparência e não com subterfúgios, escondendo os seus propósitos dos seus eleitores e dos próprios dirigentes do partido. Quando se esconde opções políticas relevantes atrás de formulações ambíguas, passíveis de várias e distintas leituras, a legitimidade democrática fica ferida de morte. Nesta matéria o PSD começou mal, reproduzindo comportamentos bastante criticados ao PS.
Isso é directamente dirigido ao novo primeiro-ministro?
Não. Recorda-se do que foi apresentado à sociedade? Avançar com um modelo dual com duas vertentes. A militar, com a actual GNR, e a civil, com três áreas. Mas uma vertente civil podia ser uma que tivesse a PSP, a PJ e o SEF, completamente autónomos, como podia ser uma "polícia nacional", e foi isso que eu li ali. Houve colegas que me disseram que não, que não era isso. Era completamente ambíguo, dava para tudo e mais alguma coisa. E até nos entregarem o projecto, na segunda-feira antes das eleições, isto esteve escondido.
São perto de dois mil?
Somos 1271 investigadores. E mantemos a estrutura, e onde agora há de facto duplicação é entre a PSP e a GNR. Isso mantém-se. Tirando um caso pontual onde eles previam que o GOE saísse da PSP para a GNR, a maioria da duplicação mantinha-se. Na Bélgica o discurso é que a polícia ia ter mais poder e mais meios, a polícia judiciária belga foi extinta, a gendarmerie tomou conta de tudo. Em Espanha é o mesmo: a Guardia Civil que é quem tem mais peso e poder.
Tem medo então que a Polícia Judiciária seja engolida pela PSP?
Extinta. Toda a cultura organizativa vai desaparecer.
E não se poupa dinheiro em juntar ministérios?
Não. Será que é um ministro e dois ou três secretários de Estado que vão fazer diferença? O ministério da Justiça/Administração Interna será pesadíssimo.
As competências específicas de cada um dos órgãos de polícia criminal estão a ser cumpridas?
A última LOIC, a legislação da investigação criminal, não prevê sansões para quem não cumpre as competências específicas das polícias. Estas sanções poderiam, por exemplo, resultar na nulidade das investigações que fossem feitas sem cumprir as competências específicas de cada uma das polícias. Mas não há sanções. Não acontece nada. Alguns procuradores, e procuradoras, entendem que, como são titulares da acção penal, dão a investigação a quem quiserem. Geralmente é à PSP ou à GNR que dão investigações que são da nossa competência. E dizem, assumem, que não têm que cumprir a lei. Caso se cumprisse a lei, isto funcionava. Se continuarem a não cumprir a Lei, se calhar temos que voltar à polícia única de investigação criminal para resolver de vez o problema e acabar com os conflitos.
Retirar a investigação criminal à GNR e PSP?
Com a possível integração dessas pessoas na polícia judiciária.
A polícia nacional na PJ?
Não, eles mantinham-se, mas toda a investigação criminal ficava com a PJ. Nos da PSP e GNR haveria a perspectiva de entrarem por baixo e fazerem o acesso à carreira de inspector. Os outros desenvolveriam a vertente de segurança nacional e de policiamento de proximidade. Já não se vê polícias na rua, ninguém faz patrulha. Está tudo a fazer investigação criminal. É o que toda a gente quer.
Tem entrado gente para a PJ a ritmo suficiente?
Não, os últimos que entraram foram 142, várias vezes anunciados pelo ministro Alberto Costa em 2005,2006 e entraram em 2009/2010. Neste momento está a correr um curso para 100 novos inspectores.
Os que saem não estão a ser substituídos?
No ano passado eram 1400 investigadores. Neste momento somos 1271. Ou seja, estes 100 vão fazer 1300, com os que vão sair ainda. O que não vai colmatar as faltas num quadro altamente deficitário.
Até porque com a crise vai haver mais criminalidade?
Espera-se que, com esta crise, aquela criminalidade para levar 200 ou 300 euros, para comer, para levar dinheiro para alimentar os filhos sem arriscar muito, tende a aumentar. E também a criminalidade organizada.
Há mais mulheres que homens da Polícia Judiciária. Isso é bom ou mau?
A questão não é essa. Há áreas mais complicadas, nos bairros difíceis. Há muitas mulheres com quem eu saía para a rua na maior das tranquilidades. Mas por alguma razão os testes físicos são diferentes e menos exigentes. Em Espanha a forma de resolver esse problema foi fazer testes físicos iguais para todos. E o número de mulheres e homens ficou mais aproximado. As mulheres também têm o problema da maternidade, é incompatível para fazer buscas com violência. Aos 40, 45 anos preferem não ter lugares tão operacionais, mais de secretária.
E investigadores de crime informático são a menos?
Isso é uma falsa questão, porque não podemos abrir vagas e colocá-los a todos no crime informático. Mas quem tem essas licenciaturas e é seleccionado, se calhar prefere ir para outras áreas de investigação.